De todas as guerras que se travaram,
quer de cidade contra cidade, quer de nação contra nação, o nosso século ainda não viu outra tão grande — e não sabemos que tenha
havido outra semelhante —
como a que os judeus sustentaram contra os romanos. Houve, no entanto, pessoas
que se dispuseram a escrevê-la,
embora por si mesmas dela nada soubessem, baseando os seus conhecimentos apenas
em informações
vãs e falsas. Quanto
aos que nela tomaram parte, a sua bajulação aos romanos e o seu ódio pelos judeus os
fez relatar as coisas de maneira muito diferente do que eram na realidade. Os
seus escritos estão
cheios de louvores a uns e censuras a outros, sem qualquer preocupação com a verdade. Foi
isso o que me fez decidir escrever em grego, para satisfação daqueles que estão sujeitos ao Império Romano e para
informar as outras nações,
o que escrevi há
pouco em minha língua.
Meu pai chamava-se Matatias. Meu nome é Josefo, e sou hebreu
de nascimento, sacerdote em Jerusalém. No princípio, combati contra
os romanos, e a necessidade, por fim, me obrigou a empreender a carreira das
armas.
Quando essa grande guerra começou, o Império Romano era
agitado por questões
internas. Os judeus mais jovens e exaltados, confiando em suas riquezas e em
sua coragem, suscitaram tão
grande perturbação
no Oriente, para aproveitar a ocasião, que povos inteiros tiveram receio
de lhes ficar sujeitos, porque eles haviam chamado em seu auxílio os outros judeus
que habitavam além
do Eufrates, a fim de se revoltarem todos juntamente. Foi depois da morte de
Nero que se viu mudar a face do império. A Gália, vizinha da Itália, sublevou-se. A
Alemanha não
estava tranqüila,
e muitos aspiravam ao soberano poder. Os exércitos desejavam a revolução, na esperança de com isso serem
beneficiados mo-netariamente.
Como todas essas coisas eram por
demais importantes, a tristeza que senti ao ver que se desvirtuava a verdade
fez-me tomar o cuidado de informar exatamente aos partos, aos babilônios, aos mais
afastados entre os árabes,
aos judeus que habitam além
do Eufrates e aos atenienses acerca da causa dessa guerra, bem como de tudo o
que se passou e de que modo ela chegou ao fim. E não posso ainda agora
tolerar que os gregos e os romanos, que não estavam presentes, a ignorem e sejam
enganados pela bajulação
desses historiadores, que só
lhes narram fábulas.
Confesso não poder compreender a
imprudência deles, quando,
para fazer passar os romanos pelos primeiros de todos os homens, rebaixam os
judeus. Será uma
grande glória
superar inimigos pouco temíveis?
Ignoram eles as forças
poderosas empregadas pelos romanos nessa guerra, durante o tempo em que ela
durou, e as dificuldades que suportaram? Não consideram eles que é diminuir o mérito extraordinário de seus generais
minimizar a resistência
que o valor dos judeus os fez experimentar na execução de tão difícil empreendimento?
Evitarei bem imitá-los, revelando, além da verdade, os
feitos dos de minha nação,
tal como eles relataram os dos romanos. Farei justiça a uns e a outros,
expondo os fatos sinceramente. Nada afirmarei que não possa provar e não procurarei outro
alívio à minha dor senão deplorando a ruína de minha pátria — ainda mais quando o
próprio imperador Tito,
que teve a direção
de toda a guerra e dela fez referência como testemunha, reconheceu que
as divisões domésticas foram a causa
de nossa derrota e que não
foi voluntariamente, mas por culpa daqueles que se haviam tornado os nossos
tiranos, que os romanos incendiaram o nosso Templo. Esse grande príncipe não somente teve
compaixão desse pobre povo,
vendo-o correr para a sua própria
ruína, pela violência daqueles
facciosos, como também
ele mesmo muitas vezes adiou a tomada da praça para lhes dar tempo e ocasião de se arrepender.
Se alguém julgar que o meu ressentimento pela
infelicidade de meu país
me motivou, contra as leis da história, a acusar fortemente os responsáveis por ela, que
acrescentaram ladroeira pública
à sua tirania, devem
perdoar-me e atribuí-lo
à minha extrema aflição. E ela não poderia ser mais
justa, pois entre tantas cidades sujeitas ao Império Romano não se encontrará uma que, como a
nossa, tendo sido elevada a tão
alto grau de honra e de glória,
tenha caído em miséria tão espantosa que,
creio eu, desde a criação
do mundo jamais se presenciou algo semelhante. A isso, acrescente-se que não é a inimigos externos,
mas a nós mesmos, que
devemos atribuir as nossas desgraças. Assim, como me poderei conter em tamanha
dor? No entanto, ainda que
algumas pessoas não
se deixem comover por essa
consideração
e desejem condenar com rigor um sentimento que me parece tão razoável, elas poderão ater-se à minha história somente nas
coisas que refiro, sem se incomodar com as minhas queixas, admitindo-as apenas
como uma efusão
da alma do historiador.
Confesso que muitas vezes censurei — com razão, parece-me — os mais eloqüentes gregos porque,
embora as coisas acontecidas no seu tempo sobrepujem em muito as dos séculos que os
precederam, eles contentam-se em julgá-las sem nada escrever e em censurar
os que as escreveram, sem considerar que, se estes lhes são inferiores em
capacidade, têm
sobre eles a vantagem de haver servido o bem público com o seu trabalho. Esses mesmos
censores dos outros escrevem o que se passou entre os sírios e os medos como
tendo sido mal narrado pelos antigos escritores, embora estes não lhes sejam menos
inferiores na maneira de bem escrever que no intento que tiveram ao fazê-lo, pois só referiram e
quiseram referir as coisas de que tinham conhecimento e teriam tido vergonha
de falsear a verdade.
Assim, não poderíamos deixar de louvá-los após terem dado à posteridade o
conhecimento do que se passou no seu tempo, que ainda não havia aparecido em
público. Eles devem ser
tidos como os mais hábeis,
pois, em vez de trabalhar sobre as obras de outros, trocando somente a ordem,
escrevem coisas novas e compõem
um corpo de história
que somente a eles se deve. Por mim, posso dizer que, sendo estrangeiro, não houve despesa que
eu não fizesse nem cuidado
que não tomasse para
informar os gregos e os romanos de tudo o que se refere à nossa nação. Os gregos, ao
contrário, falam muito
quando se trata de sustentar os seus interesses, quer em particular, quer
perante os juizes, mas se calam quando é preciso reunir com muita dificuldade
tudo o que é
necessário para compor uma
história verdadeira e não acham estranho que
aqueles que nenhum conhecimento têm dos feitos dos príncipes e dos grandes
generais e são
incapazes de os descrever ousem fazê-lo. Isso mostra que nós procuramos a
verdade da história
tanto quanto os gregos a desprezam e disso se descuidam.
Eu teria podido dizer qual foi a
origem dos judeus, de que maneira saíram do Egito, por quais províncias vagaram durante
longo tempo, as que ocuparam e como passaram a outras. Mas, além do fato de que isso
não se refere a este
tempo, eu o julgaria inútil,
pois vários de meus
compatriotas já
o escreveram, com muito cuidado, e os gregos traduziram essas obras para a sua
língua sem se afastar
muito da verdade. Assim, começarei
a minha história
por onde os seus autores e os nossos profetas concluíram as suas. Referirei particularmente, com
toda a exatidão
que me for possível,
a guerra que se travou no meu tempo e contentar-me-ei em tocar brevemente o que
se passou nos séculos
precedentes.
Direi de que modo o rei Antíoco Epifânio, depois de tomar
Jerusalém e de tê-la possuído durante três anos e meio, de lá foi expulso pelos
filhos de Matatias, hasmoneu; como a divisão suscitada entre os seus sucessores, com
relação à posse do reino,
atraiu os romanos sob o comando de Pompeu; como Herodes, filho de Antípatro, com o auxílio de Sósio, general do exército romano, pôs fim à dominação dos príncipes hasmoneus;
como, depois da morte de Herodes, sob o reinado de Augusto, sendo Quintílio Varo governador
da Judéia, o povo se
revoltou; como, no décimo
segundo ano do reinado de Nero, começou a guerra, que se deu sob Céstio, que comandava
as tropas romanas; quais foram os primeiros feitos dos judeus e as praças que eles fortificaram;
como as perdas sofridas em várias
ocasiões por Céstio fizeram Nero
temer pelo êxito
de suas armas, entregando-as a Vespasiano; como esse general, acompanhado pelo
mais velho de seus filhos, entrou na judéia com um grande exército romano; como um
grande número de suas tropas
auxiliares foi desbaratada na Galileia; como ele tomou algumas cidades dessa
província e outras, que se
entregaram a ele.
Referirei também, sinceramente e
segundo o que presenciei e constatei com os meus próprios olhos, o
proceder dos romanos em suas guerras, a sua ordem e a sua disciplina; a extensão e a natureza da
Alta e da Baixa Galileia; os limites e as fronteiras da judéia, a qualidade da
terra, os lagos e as fontes que aí se encontram; e os males suportados
pelas cidades que foram tomadas. Não deixarei de mencionar, do mesmo
modo, as calamidades que eu mesmo experimentei em minha vida e que são bem conhecidas.
Direi também como a morte de
Nero aconteceu, estando já
em péssimo estado os
interesses dos judeus e os do império; como Vespasiano, que se apressava
para marchar contra Jerusalém,
foi chamado a Roma; os presságios
que ele teve de sua futura grandeza; as mudanças sucedidas na capital do império; como ele, contra
a sua vontade, foi declarado imperador pelos soldados e como foi ao Egito dar
as ordens necessárias;
como a judéia
foi agitada por novas perturbações;
como surgiram tiranos uns contra os outros; como Tito, à sua volta do Egito,
entrou duas vezes naquela província;
como e em que lugar ele reuniu o seu exército; como e quantas vezes ele próprio testemunhou as sedições que se sucederam
em Jerusalém;
suas aproximações e todas as dificuldades que
enfrentou para atacar essa praça; qual era a torre dos muros da
cidade, a sua fortificação
e a do Templo; a descrição
do Templo, as suas medidas e as do altar — nisso nada omitirei.
Falarei das nossas festas solenes, das
cerimônias que nelas se
observam, das sete espécies
de purificação;
das funções dos sacerdotes, de
seus hábitos e dos do sumo
sacerdote; e da santidade do Templo, sem nada deturpar ou acrescentar. Farei
ver também a crueldade de
nossos tiranos contra os de sua própria nação e a humanidade dos romanos para
conosco, sendo que éramos
estrangeiros com relação
a eles. Mostrarei também
quantas vezes Tito se esforçou
para salvar a cidade e o Templo e reunir os que estavam tão obstinadamente
divididos. Falarei dos muitos e diversos males suportados pelo povo, o qual,
depois de sofrer todas as misérias
que a guerra, a carestia e as sedições podem causar, ainda se viu reduzido
à servidão, pela tomada dessa
grande e poderosa cidade.
Não me esquecerei também de dizer em que
desgraças caíram os desertores da
nação, a maneira como o
Templo foi queimado, contra a vontade de Tito, a quantidade de riquezas consagradas
a Deus que o fogo destruiu, bem como a destruição completa da cidade, os prodígios que precederam
essa extrema desolação,
a escravidão
de nossos tiranos, o grande número
daqueles que foram levados cativos e as suas diversas vicissitudes. Direi
ainda a maneira como os romanos perseguiram os que escaparam da guerra e como,
depois de os vencer, destruíram
completamente as praças
e os lugares para onde eles se haviam retirado. Por fim, falarei da visita
feita por Tito a toda a província
para restabelecer a ordem e de sua volta à Itália e de seu triunfo. Escreverei todas
essas coisas em sete livros, divididos em capítulos, para satisfação das pessoas que
amam a verdade, e não
tenho motivo para temer que aqueles que tiveram a direção dessa guerra ou que
lá se encontraram
presentes me acusem de haver faltado à sinceridade. Mas é tempo de começarmos a executar o
que prometi.
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Flávio Josefo foi um escritor e
historiador judeu que viveu entre 37 e 103 d.C. Seu pai era sacerdote, e sua mãe descendia da casa
real hasmoneana. Portanto, Josefo era de sangue real. Ele foi muito bem instruído nas culturas
judaica e grega. Falava perfeitamente o latim — o idioma do Império Romano — e também o grego. Logo cedo,
demonstrou intenso zelo religioso, filiando-se ao grupo religioso dos fariseus.
Durante toda a sua vida, a sua terra e o seu povo estiveram sob o domínio romano.
Em 66 d.C, irrompeu uma revolta dos
judeus contra os romanos, e josefo foi enviado para dirigir as operações contra os
dominadores, na turbulenta Galileia. Aí ele logrou algumas vitórias, mas logo foi
derrotado, rendendo-se ao exército
romano. Finda a guerra, foi conduzido a Roma, onde lhe conferiram a cidadania
romana e também
uma pensão do Estado, época em que lhe foi
dado o nome romano de Flávio.
Ele viveu em Roma até
o fim de sua vida, escrevendo a obra que atravessaria os séculos e chegaria até nós. Depois da Bíblia, é a maior fonte de
informações sobre os impérios da Antigüidade, o povo judeu e
o Império Romano.
As obras de Josefo vêm sendo preservadas e
divulgadas pela Igreja cristã,
uma vez que os judeus até
hoje consideram josefo um oportunista, devido ao seu relacionamento com os
romanos.
Qualquer estudante da Bíblia encontrará em Flávio Josefo descrições minuciosas de
personagens dos Evangelhos e de Atos do Apóstolos, tais como Pilatos, os Agripas
e os Herodes. A história
desses personagens e inúmeros
pormenores do mundo greco-romano, relatados nesta obra, receberam surpreendente
confirmação com as recentes
descobertas de Qunram e Massada, em Israel, as quais conferiram aos relatos de
Josefo uma credibilidade ainda maior.
*Extraído do Livro de Flávio Josefo,
Histórias do Hebreus,
De Abraão á Queda de Jerusalém, CPAD,8ed.,2004