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sexta-feira, 5 de abril de 2013

Prefácio de Josefo*

           De todas as guerras que se travaram, quer de cidade contra cidade, quer de nação contra nação, o nosso século ainda não viu outra tão grande e não sabemos que tenha havido outra semelhante como a que os judeus sustentaram contra os romanos. Houve, no entanto, pessoas que se dispuseram a escrevê-la, embora por si mesmas dela nada soubessem, baseando os seus conhecimentos apenas em informações vãs e falsas. Quanto aos que nela tomaram parte, a sua bajulação aos romanos e o seu ódio pelos judeus os fez relatar as coisas de maneira muito diferente do que eram na realidade. Os seus escritos estão cheios de louvores a uns e censuras a outros, sem qualquer preocupação com a verdade. Foi isso o que me fez decidir escrever em grego, para satisfação daqueles que estão sujeitos ao Império Romano e para informar as outras nações, o que escrevi há pouco em minha língua.
            Meu pai chamava-se Matatias. Meu nome é Josefo, e sou hebreu de nasci­mento, sacerdote em Jerusalém. No princípio, combati contra os romanos, e a necessidade, por fim, me obrigou a empreender a carreira das armas.
           Quando essa grande guerra começou, o Império Romano era agitado por questões internas. Os judeus mais jovens e exaltados, confiando em suas rique­zas e em sua coragem, suscitaram tão grande perturbação no Oriente, para apro­veitar a ocasião, que povos inteiros tiveram receio de lhes ficar sujeitos, porque eles haviam chamado em seu auxílio os outros judeus que habitavam além do Eufrates, a fim de se revoltarem todos juntamente. Foi depois da morte de Nero que se viu mudar a face do império. A Gália, vizinha da Itália, sublevou-se. A Alemanha não estava tranqüila, e muitos aspiravam ao soberano poder. Os exér­citos desejavam a revolução, na esperança de com isso serem beneficiados mo-netariamente.
          Como todas essas coisas eram por demais importantes, a tristeza que senti ao ver que se desvirtuava a verdade fez-me tomar o cuidado de informar exatamente aos partos, aos babilônios, aos mais afastados entre os árabes, aos judeus que habitam além do Eufrates e aos atenienses acerca da causa dessa guerra, bem como de tudo o que se passou e de que modo ela chegou ao fim. E não posso ainda agora tolerar que os gregos e os romanos, que não estavam presentes, a ignorem e sejam engana­dos pela bajulação desses historiadores, que só lhes narram fábulas.
            Confesso não poder compreender a imprudência deles, quando, para fazer passar os romanos pelos primeiros de todos os homens, rebaixam os judeus. Será uma grande glória superar inimigos pouco temíveis? Ignoram eles as forças po­derosas empregadas pelos romanos nessa guerra, durante o tempo em que ela durou, e as dificuldades que suportaram? Não consideram eles que é diminuir o mérito extraordinário de seus generais minimizar a resistência que o valor dos judeus os fez experimentar na execução de tão difícil empreendimento?
            Evitarei bem imitá-los, revelando, além da verdade, os feitos dos de minha nação, tal como eles relataram os dos romanos. Farei justiça a uns e a outros, expondo os fatos sinceramente. Nada afirmarei que não possa provar e não pro­curarei outro alívio à minha dor senão deplorando a ruína de minha pátria ainda mais quando o próprio imperador Tito, que teve a direção de toda a guerra e dela fez referência como testemunha, reconheceu que as divisões domésticas foram a causa de nossa derrota e que não foi voluntariamente, mas por culpa daqueles que se haviam tornado os nossos tiranos, que os romanos incendiaram o nosso Templo. Esse grande príncipe não somente teve compaixão desse pobre povo, vendo-o correr para a sua própria ruína, pela violência daqueles facciosos, como também ele mesmo muitas vezes adiou a tomada da praça para lhes dar tempo e ocasião de se arrepender.
            Se alguém julgar que o meu ressentimento pela infelicidade de meu país me motivou, contra as leis da história, a acusar fortemente os responsáveis por ela, que acrescentaram ladroeira pública à sua tirania, devem perdoar-me e atribuí-lo à minha extrema aflição. E ela não poderia ser mais justa, pois entre tantas cida­des sujeitas ao Império Romano não se encontrará uma que, como a nossa, ten­do sido elevada a tão alto grau de honra e de glória, tenha caído em miséria tão espantosa que, creio eu, desde a criação do mundo jamais se presenciou algo semelhante. A isso, acrescente-se que não é a inimigos externos, mas a nós mes­mos, que devemos atribuir as nossas desgraças. Assim, como me poderei conter em tamanha dor? No entanto, ainda que algumas pessoas não se deixem como­ver por essa consideração e desejem condenar com rigor um sentimento que me parece tão razoável, elas poderão ater-se à minha história somente nas coisas que refiro, sem se incomodar com as minhas queixas, admitindo-as apenas como uma efusão da alma do historiador.
           Confesso que muitas vezes censurei com razão, parece-me os mais eloqüentes gregos porque, embora as coisas acontecidas no seu tempo sobrepu­jem em muito as dos séculos que os precederam, eles contentam-se em julgá-las sem nada escrever e em censurar os que as escreveram, sem considerar que, se estes lhes são inferiores em capacidade, têm sobre eles a vantagem de haver servido o bem público com o seu trabalho. Esses mesmos censores dos outros escrevem o que se passou entre os sírios e os medos como tendo sido mal narra­do pelos antigos escritores, embora estes não lhes sejam menos inferiores na maneira de bem escrever que no intento que tiveram ao fazê-lo, pois só referi­ram e quiseram referir as coisas de que tinham conhecimento e teriam tido ver­gonha de falsear a verdade.
           Assim, não poderíamos deixar de louvá-los após terem dado à posteridade o conhecimento do que se passou no seu tempo, que ainda não havia aparecido em público. Eles devem ser tidos como os mais hábeis, pois, em vez de trabalhar sobre as obras de outros, trocando somente a ordem, escrevem coisas novas e compõem um corpo de história que somente a eles se deve. Por mim, posso dizer que, sendo estrangeiro, não houve despesa que eu não fizesse nem cuida­do que não tomasse para informar os gregos e os romanos de tudo o que se refere à nossa nação. Os gregos, ao contrário, falam muito quando se trata de sustentar os seus interesses, quer em particular, quer perante os juizes, mas se calam quando é preciso reunir com muita dificuldade tudo o que é necessário para compor uma história verdadeira e não acham estranho que aqueles que nenhum conhecimento têm dos feitos dos príncipes e dos grandes generais e são incapazes de os descrever ousem fazê-lo. Isso mostra que nós procuramos a verdade da história tanto quanto os gregos a desprezam e disso se descuidam.
            Eu teria podido dizer qual foi a origem dos judeus, de que maneira saíram do Egito, por quais províncias vagaram durante longo tempo, as que ocuparam e como passaram a outras. Mas, além do fato de que isso não se refere a este tempo, eu o julgaria inútil, pois vários de meus compatriotas já o escreveram, com muito cuidado, e os gregos traduziram essas obras para a sua língua sem se afastar muito da verdade. Assim, começarei a minha história por onde os seus autores e os nossos profetas concluíram as suas. Referirei particularmente, com toda a exatidão que me for possível, a guerra que se travou no meu tempo e contentar-me-ei em tocar brevemente o que se passou nos séculos precedentes.
            Direi de que modo o rei Antíoco Epifânio, depois de tomar Jerusalém e de tê-la possuído durante três anos e meio, de lá foi expulso pelos filhos de Matatias, hasmoneu; como a divisão suscitada entre os seus sucessores, com relação à posse do reino, atraiu os romanos sob o comando de Pompeu; como Herodes, filho de Antípatro, com o auxílio de Sósio, general do exército ro­mano, pôs fim à dominação dos príncipes hasmoneus; como, depois da mor­te de Herodes, sob o reinado de Augusto, sendo Quintílio Varo governador da Judéia, o povo se revoltou; como, no décimo segundo ano do reinado de Nero, começou a guerra, que se deu sob Céstio, que comandava as tropas romanas; quais foram os primeiros feitos dos judeus e as praças que eles for­tificaram; como as perdas sofridas em várias ocasiões por Céstio fizeram Nero temer pelo êxito de suas armas, entregando-as a Vespasiano; como esse ge­neral, acompanhado pelo mais velho de seus filhos, entrou na judéia com um grande exército romano; como um grande número de suas tropas auxiliares foi desbaratada na Galileia; como ele tomou algumas cidades dessa província e outras, que se entregaram a ele.
            Referirei também, sinceramente e segundo o que presenciei e constatei com os meus próprios olhos, o proceder dos romanos em suas guerras, a sua ordem e a sua disciplina; a extensão e a natureza da Alta e da Baixa Galileia; os limites e as fronteiras da judéia, a qualidade da terra, os lagos e as fontes que aí se encon­tram; e os males suportados pelas cidades que foram tomadas. Não deixarei de mencionar, do mesmo modo, as calamidades que eu mesmo experimentei em minha vida e que são bem conhecidas.
            Direi também como a morte de Nero aconteceu, estando já em péssimo estado os interesses dos judeus e os do império; como Vespasiano, que se apressava para marchar contra Jerusalém, foi chamado a Roma; os presságios que ele teve de sua futura grandeza; as mudanças sucedidas na capital do império; como ele, contra a sua vontade, foi declarado imperador pelos soldados e como foi ao Egito dar as ordens necessárias; como a judéia foi agitada por novas perturbações; como surgi­ram tiranos uns contra os outros; como Tito, à sua volta do Egito, entrou duas vezes naquela província; como e em que lugar ele reuniu o seu exército; como e quantas vezes ele próprio testemunhou as sedições que se sucederam em Jerusa­lém; suas aproximações e todas as dificuldades que enfrentou para atacar essa praça; qual era a torre dos muros da cidade, a sua fortificação e a do Templo; a descrição do Templo, as suas medidas e as do altar nisso nada omitirei.
           Falarei das nossas festas solenes, das cerimônias que nelas se observam, das sete espécies de purificação; das funções dos sacerdotes, de seus hábitos e dos do sumo sacerdote; e da santidade do Templo, sem nada deturpar ou acrescen­tar. Farei ver também a crueldade de nossos tiranos contra os de sua própria nação e a humanidade dos romanos para conosco, sendo que éramos estrangei­ros com relação a eles. Mostrarei também quantas vezes Tito se esforçou para salvar a cidade e o Templo e reunir os que estavam tão obstinadamente dividi­dos. Falarei dos muitos e diversos males suportados pelo povo, o qual, depois de sofrer todas as misérias que a guerra, a carestia e as sedições podem causar, ainda se viu reduzido à servidão, pela tomada dessa grande e poderosa cidade.
           Não me esquecerei também de dizer em que desgraças caíram os desertores da nação, a maneira como o Templo foi queimado, contra a vontade de Tito, a quantidade de riquezas consagradas a Deus que o fogo destruiu, bem como a destruição completa da cidade, os prodígios que precederam essa extrema deso­lação, a escravidão de nossos tiranos, o grande número daqueles que foram leva­dos cativos e as suas diversas vicissitudes. Direi ainda a maneira como os roma­nos perseguiram os que escaparam da guerra e como, depois de os vencer, des­truíram completamente as praças e os lugares para onde eles se haviam retirado. Por fim, falarei da visita feita por Tito a toda a província para restabelecer a or­dem e de sua volta à Itália e de seu triunfo. Escreverei todas essas coisas em sete livros, divididos em capítulos, para satisfação das pessoas que amam a verdade, e não tenho motivo para temer que aqueles que tiveram a direção dessa guerra ou que lá se encontraram presentes me acusem de haver faltado à sinceridade. Mas é tempo de começarmos a executar o que prometi.

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        Flávio Josefo foi um escritor e historiador judeu que viveu entre 37 e 103 d.C. Seu pai era sacerdote, e sua mãe descen­dia da casa real hasmoneana. Portanto, Josefo era de sangue real. Ele foi muito bem instruído nas culturas judaica e grega. Falava perfeitamente o latim o idioma do Império Romano e também o grego. Logo cedo, demonstrou intenso zelo religioso, filiando-se ao grupo religioso dos fariseus. Durante toda a sua vida, a sua terra e o seu povo estiveram sob o domínio romano.
       Em 66 d.C, irrompeu uma revolta dos judeus contra os romanos, e josefo foi enviado para dirigir as operações contra os dominadores, na turbulenta Galileia. Aí ele logrou algumas vitórias, mas logo foi derrotado, rendendo-se ao exército romano. Finda a guerra, foi conduzido a Roma, onde lhe conferi­ram a cidadania romana e também uma pensão do Estado, época em que lhe foi dado o nome romano de Flávio. Ele viveu em Roma até o fim de sua vida, escrevendo a obra que atravessaria os séculos e chegaria até nós. Depois da Bíblia, é a maior fonte de informações sobre os impérios da Antigüidade, o povo judeu e o Império Romano.
        As obras de Josefo vêm sendo preservadas e divulgadas pela Igreja cristã, uma vez que os judeus até hoje consideram josefo um oportunista, devido ao seu relacionamento com os romanos.
        Qualquer estudante da Bíblia encontrará em Flávio Josefo descrições mi­nuciosas de personagens dos Evangelhos e de Atos do Apóstolos, tais como Pilatos, os Agripas e os Herodes. A história desses personagens e inúmeros pormenores do mundo greco-romano, relatados nesta obra, receberam sur­preendente confirmação com as recentes descobertas de Qunram e Massada, em Israel, as quais conferiram aos relatos de Josefo uma credibilidade ainda maior.
*Extraído do Livro de Flávio Josefo, Histórias do Hebreus, De Abraão á Queda de Jerusalém, CPAD,8ed.,2004

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